segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Do dia em que encontrei Deus (justamente onde nunca havia procurado)

Foi numa noite de sábado. No galpão de um sítio onde a natureza é o maior luxo disponível - e nada falta. Cheguei cedo, o sol ainda era presença. Que fazer quando se espera o que nem sabe que espera? Fica. Aquieta. Silencia. Observa. Desliga o celular, desconecta do tempo e se conecta com o não-tempo. Respira...

Estamos ali para a Cerimônia de Gaya Kali, um ritual de autocura com ayahuasca, sagrada medicina da floresta. Orientações de bordo: haveria música - e da boa -  a noite toda, bem como assistência amorosa e constante. Confiei na equipe de vôo, que ali estava a serviço por amor, apenas e tudo isso. O que poderia ir mal? "Você pode enlouquecer/ sofrer/ morrer!". Ora pois, se até atravessar a rua chupando um Chicabon pode ser perigosíssimo! Aliás, se não quer fazer algo, basta se dedicar à lista dos perigos possíveis e pronto: sente-se placidamente em sua zona de conforto, onde NADA floresce nem frutifica. Fique aí, seguro, inerte, seco, frio. Morto.

Anoitece, pessoas chegam, a roda se faz. Muitas almas irmãs, muitos rostos até então desconhecidos. Fogueira acesa, luzes se apagam. A música começa. Cessa o burburinho das vozes. Sinto uma paz estranha: eu que chegara a um limite de exaustão física e psíquica, levada pra um lado e outro feito barco à deriva em alto-mar, carregando nas costas um mundo espinhoso, já não sabia se tinha fé ou esperança em qualquer coisa. Deus? Quem/ o que é essa palavra? Por que eu existo? Onde fica o PROCON existencial?

Vem a primeira "carga", ou dose. Meu estômago já estava nauseado, misturando ansiedade com jejum prolongado e medo da peia. A peia é o mal-estar que pode vir (ou não) depois da ingestão da beberagem, com efeitos físicos e psíquicos - como "levar uma surra" dos próprios temores e certezas. Como não havia sentido NADA na primeira experiência com ayahuasca, temia principalmente a frustração. Me julgava até mesmo não-merecedora da experiência, por ouvir, maravilhada, todos os relatos de mirações e sensações de quem passou pelo mesmo processo, o que a mim não fora permitido. Respiro. Medito. Me firmo na música.

Segunda carga. A partir deste momento, pode vir a purgação - e também a miração. Me sentei perto da fogueira, cantei, cantei alto, mais e mais. Então veio a náusea: restava deixar ir. Ao me levantar e caminhar para o ambiente externo, tive a grata visão de que a realidade era a mesma e diversa. Tudo estava em um plano holográfico de muitas e vívidas cores, tudo era "fluorescente" e suculento e pleno. O chão de terra e gramíneas se mostrou um tapete macio que eu simplesmente não podia conspurcar com meus pés sujos e humanos. Nem conter o assombro que me fez dizer ao assistente, num quase grito: "nossa, como é tudo tão lindo e eu não vi antes!" (ele, com amor e paciência, sorriu).

Fui levada a uma cadeira, debaixo de árvores. Ouvi que ali estaria por todo tempo que eu precisasse e que só precisaria me lembrar de respirar. Sentada, olhei à minha volta e vi outras pessoas, em corpos físicos e sutis, orbitando. Senti que, sentada em uma cadeira debaixo da árvore, num sítio localizado em coordenadas geográficas aleatórias, eu era o centro do Universo. Tudo funcionava e se movia e vivia em mim, por mim, pela percepção. Eu era o motivo de tudo e essa percepção não era egóica: não me fazia mais importante que nenhum outro Ser. Veio a náusea forte! Mas eu não conseguia apenas entregar: como eu podia macular tudo aquilo que se revelava sagrado em minha volta, com meu vômito? Respirei e segurei. Somente purgaria quando o vômito fosse a minha forma de abençoar. Quando enfim, consegui, essa bênção veio em jatos, junto a lágrimas e suor. Uffffff... Passou a náusea e veio a Força.

Trazia no pescoço um japamala, 108 contas de ametista, que vim consagrar na fogueira sagrada. Eu não sabia se haveria um rito para a consagração, decidi sentir o melhor momento para isso. Sentei de novo junto à fogueira e a sensação era de comunhão com tudo, com todos. Cantei mais alto e sentido, minha voz era limpa e forte num canto que vinha de dentro. Em certo momento, coloquei as mãos sobre meu peito e as contas do japamala estavam muito, muito quentes. Tirei do pescoço e senti que minhas mãos estavam ainda mais quentes que as pedras. Não sabia ao certo se era a fogueira que transmitia o calor a elas ou se eram minhas mãos que o faziam, mas achava interessante que a pele do pescoço e do peito não se queimavam. Com as mãos em concha, em gesto de muita reverência, ofertei o japamala ao fogo. Não havia palavra nem mantra nem imagem alguma, era eu e o fogo, deidades concedendo poderes àquele objeto que a partir de então, tornou-se também sagrado.

Havia o convite para a terceira carga, mas somente aos corajosos. Feito eu. Pedi ao condutor da cerimônia (Sahaj Kaliman) e ele me ofertou a terceira. Agradeci e ele emendou: "eu que sou grato". Voltei a dançar e cantar, às vezes caminhava, aguardava a chuva anunciada pelos trovões. Queria receber a chuva, queria subir nas árvores, queria me integrar à naturaleza... E depois da chuva mansa, me sentei em um tronco caído, de costas para o galpão, distante de todos. Sozinha. Ou... talvez não.

Avistei à distância uma árvore, não a maior de todas as que me cercavam, mas era diferente. Sua copa arredondada recebia uma claridade brilhante e branca, como se fosse iluminada por um canhão de luz. Fixei meu olhar àquela árvore luminosa e ali busquei palavras para me expressar. Eu quero falar com Deus. É meu desejo ouvir Sua voz. Humildemente me entrego: aqui estou para Ti. Então apareceram no céu dois feixes paralelos de luz. A mente queria participar (sem ser convidada) e questionou: "se eu contar pra alguém o que estou vendo, quem vai acreditar?" E foi este o momento. Dentro de mim, ressoou a resposta:

"E se ninguém mais acreditar, significa que você não viu?" Risos.

Ele RIU. Riu da minha puerilidade. Da minha mão segurando o joystick, sendo que Ele estava jogando. Riu tão francamente, tão serenamente, que eu comecei a rir também. E ri ri ri até vir o choro. E ri porque estava chorando, e ri da minha risada engraçada. Uivei de rir, chorei de rir. Olhei de novo para a árvore, ela vibrou como se todas as folhas rissem também, de mim e comigo.

Eu ri com Deus. Eu ri de Deus. Eu ri em Deus.

Fechei os olhos, contrita, e de novo ressoou em mim: "Entende, pequena. Quando você abre os olhos, Eu SOU o que é fora. Quando você fecha os olhos, Eu SOU o que é dentro. Nada há que não seja Eu. Portanto, tu também és Eu. E me amo em ti."

Olhei à minha volta e entendi. Não há o que temer, pois tudo é Deus. Não há o que chorar, pois tudo é Graça. Não há o que perder, pois tudo é oferenda e abundância.

De todas as honrarias que esse momento mágico me trouxe, a maior de todas foi ter de volta (e inquebrantável) a minha fé. Eu nunca fui de igrejas, cultos, dogmas, nomes e ritos. Sou fluida demais para ter mestres ou gurus. No entanto... não há o que me tire a convicção de que nesta noite eu tive um encontro privativo com Deus, e o que Ele me disse é que somos UM. Que todas as vezes que eu quiser encontrá-Lo, facilita se eu procurar no mesmo lugar onde Ele sempre esteve me esperando: é DENTRO.

Só agradeço e reverencio.